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Morango

Pra que não restem dúvidas sobre quando a cantada incomoda

Universa

23/05/2018 04h00

Crédito: iStock

Recentemente, numa terça-feira, fui buscar minha namorada no aeroporto. Havia dias que não nos víamos. Nos sentamos para um café. Nas mesas ao redor, algumas vazias, outras com viajantes solitários que bebiam cerveja, umas com famílias jantando, outras com casais que sentavam lado a lado e sorriam cúmplices entre um assunto e o seguinte.

Parar para um café era um pretexto pra matar as saudades pelos dias em que ficamos longe. Conversávamos a um palmo de distância, eventualmente trocando selinhos e beijos de nariz, distraídas. Absortas. Mas a paz duraria pouco.

Um homem da mesa ao lado, que estava sentado com outras duas pessoas, se levantou e chegou à nossa: "Desculpa incomodá-las, mas eu posso fazer uma pergunta?". Incomodada pela interrupção, respondi um áspero: "Desculpa, mas não, não pode!".

Com os olhos arregalados pelo meu comportamento incomum, minha namorada, que havia ficado em silêncio durante a abordagem, quis conversar sobre o ocorrido.

– Não acha que foi rude?

– Não.

– Reparei que ele foi em outra mesa, acho que queria que tirassem uma foto deles.

– Tudo bem, mas há pelo menos 20 pessoas ao redor, várias sozinhas, outras, mesmo acompanhadas, lendo ou mexendo no celular… Por que pedir justamente pra nós, que estamos curtindo um momento só nosso?!

Voltando pra casa e nos dias que se passaram refleti sobre o assunto. Fui grossa? Misândrica? Poderia ter sido mais simpática? Agi impulsivamente respondendo num tom mais agressivo que o necessário por achar que ele faria algum gracejo?

Quatro dias depois, no sábado, enquanto namorávamos jantando pizza numa cidadezinha aconchegante do interior, outra situação me colocaria à prova. Éramos gentilmente atendidas por dois garçons até que um deles, enquanto servia a bebida, soltou um "Desculpa a inconveniência, mas vocês duas são muito lindas". Mordi o maxilar, engoli seco, respirei fundo e não respondi palavra. Tentei agir de forma diferente dessa vez, mesmo extremamente incomodada.

Existem mulheres e homens que defendem esse tipo de comportamento masculino com frases do tipo: "Hoje em dia os homens não podem nem elogiar uma mulher!", "É mimimi atrás de mimimi! Mulher só reclama de cantada de homem que não é bonito!", "Isso é ditadura 'gayzista"! "Hétero não pode fazer mais nada, tudo é criticado!".

Nesse caso, para além da total falta de ética profissional está o desrespeito. Um casal de mulheres não sai de mãos dadas para ouvir xavecos ou à procura de um parceiro para um ménage. Assim como uma lésbica que vai a um consultório médico ou qualquer outro ambiente não pensa em receber lá uma cantada – ou um sermão – por sua orientação sexual. "Ah, mas acontece…" Acontece muito! Mas está errado e tem que mudar.

Se ao invés de nós duas estivesse à mesa um casal heterossexual isso aconteceria? O garçom teria se sentido na liberdade de dizer a um homem que sua namorada é muito linda? Se fosse um casal gay ele se sentiria no direito de dizer que ver dois homens trocando carinhos não lhe agrada, caso fosse esse o primeiro pensamento que lhe viesse à cabeça?  E se o garçom fosse homossexual, tudo bem atender um casal hétero e dizer à mulher que o seu namorado é muito lindo?

Não podemos banalizar a liberdade de expressão ou confundi-la com a inversão de valores. Há um limite entre o direito de manifestar uma opinião ou um pensamento e ele termina onde começa a liberdade do outro para ser e se expressar. Cantar, gracejar, cortejar alguém não é nenhum disparate quando há abertura e reciprocidade. Quando não há é desrespeito. Simples assim.

(Ao homem do aeroporto, que pode realmente não ter tido a intenção de incomodar ou fazer um galanteio, minhas desculpas. Eu poderia ter sido mais gentil. O fato de já ter enfrentado diversas situações constrangedoras e de assédio não pode fundamentar ou ser uma justificativa para minha hostilidade.)

 

Sobre a autora

Ana Angélica Martins Marques, a Morango, é mineira de Uberlândia, jornalista, fotógrafa e DJ. É também autora do livro de contos Quebrando o Aquário. Passou pela décima edição do Big Brother Brasil e só foi eliminada porque transformou o temido quarto branco no maior cabaré que você respeita. É vegetariana e cuida de três filhos felinos: Lua, Dylan e Mike.

Sobre o blog

Um espaço para falar de amor, sexo, comportamento feminino e feminismo com leveza e humor. Tudo sob o olhar de uma mulher esperta, que gosta de mulheres tão espertas quanto ela!