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Deslocadas da Nigéria: as mulheres em fuga dentro do seu próprio país

Universa

04/04/2019 04h00

Da esquerda para a direita, a jornalista brasileira Thainá Prado e a médica Nkasi Obim Nebo, em ação em campo de deslocados da Nigéria (Foto: Reprodução/Twitter/PeachAid)

Sob o sol causticante da Nigéria, onde as temperaturas chegam aos 40°C durante o dia (e ultrapassam os 30°C à noite), a jornalista paulistana Thainá Prado documenta parte da rotina das mulheres que vivem em campos de deslocados internos, onde as vítimas do grupo terrorista Boko Haram se refugiam. A principal diferença entre deslocados internos e refugiados é que deslocados são os que continuam vivendo no país de origem, enquanto são considerados refugiados os que cruzam as fronteiras. O levantamento mais recente da ONU aponta que existem mais de 1,7 milhões de deslocados internos na Nigéria sendo afetados por violações graves de direitos humanos e violência de gênero e sexo. Nessa realidade tão dramática quanto insustentável, algumas questões culturais afetam exclusivamente as mulheres.

"A menstruação é um tabu muito grande em vários países. Aqui na África, também, especialmente na Nigéria, que tem umas questões muito fortes com isso. Aqui a mulher não pode cozinhar, nem entrar na cozinha quando está menstruada. Os homens não falam sobre menstruação. Entrevistei alguns e eles ficam superenvergonhados, dizem que não querem falar sobre isso porque é coisa de mulher. Isso interfere diretamente na vida das mulheres das comunidades rurais e dos campos de deslocados. A taxa de alfabetização na Nigéria é muito mais baixa pras meninas porque elas faltam muito à escola, e uma das causas é a questão da menstruação, de não ter uma forma concreta de absorver o sangue. Elas usam pedaços de pano, recortam roupas velhas", expõe a jornalista.

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Neste ano, um curta-metragem sobre o estigma da menstruação foi premiado com o Oscar de melhor documentário. Dirigido por uma mulher, "Absorvendo o Tabu" revela o impacto que a falta de informação gera na vida das mulheres de uma comunidade rural da Índia. Sensível e necessário, o assunto merece mais visibilidade em todo o mundo.

Fundadora da ONG Peach Aid, a médica Nkasi Obim Nebo (de azul) dá auxílio pré-natal, ensina sobre planejamento familiar e distribui coletores menstruais às mulheres em campos de deslocados  na Nigéria (Foto: Reprodução/Twitter/PeachAid)

"Comecei a pesquisar o tema dois anos atrás, antes do lançamento do 'Absorvendo o Tabu', durante uma viagem ao Quênia, onde eu fazia alguns trabalhos voluntários. Num desses trabalhos conheci uma médica, Nkasi Obim Nebo, que é nigeriana e tem uma ONG, a PeachAid Medical Initiative, voltada para a orientação de mulheres. Ela dá auxílio pré-natal, ensina sobre planejamento familiar, e começou com uma ação muito legal, que é a doação de coletores menstruais veganos para as mulheres que não têm acesso – especialmente as que estão em campos de deslocados, vítimas do Boko Haram", conta Thainá, que está há duas semanas na Nigéria. "Fiz mais de cinco mil fotos, mas quero produzir um material mais íntimo. Estou em processo de apuração e entrevistas", explica.

Cada mulher recebe um kit que contém um coletor menstrual (à esquerda), uma panelinha para higienização do coletor (onde é necessário fervê-lo), e um saquinho para guardá-lo depois. Os coletores têm até dez anos de durabilidade. (Foto: Reprodução/Twitter/PeachAid)

"Eu, minha câmera e um tripé"

"Tô sozinha. Eu, minha câmera e um tripé. Algumas lentes, alguns milhares de cartões de memória, e baterias. Essa sou eu aqui na Nigéria, fazendo esse documentário, um curta de pelo menos 20 minutos. Aqui cortam a energia o tempo todo, principalmente à noite, e ninguém sabe explicar por quê. Eu tava andando pelos campos de deslocados e em algumas partes tem energia solar, fiquei bem feliz. O banho não é diário. Muitas vezes as pessoas têm que pagar por água, pelo litro de água. Quando as mulheres estão menstruadas, elas tentam passar uma aguinha, sempre. As estradas são ruins e faltam recursos financeiros pra comprar absorvente."

O idioma oficial da Nigéria é o inglês, mas há outros praticados, como haussá, ibo e ioruba. Para o trabalho, a jornalista conta com a ajuda de um tradutor (Foto: Reprodução/Twitter/PeachAid)

"Documentar estimula um repensar, ressignificar algo que é tão natural"

"Visitei um campo de deslocados em que as mulheres nunca tinham ouvido falar de coletores menstruais. Em outro campo já estavam usando e faziam a higienização na panelinha, que também é doada pra elas. O coletor é uma solução tanto pela sustentabilidade, por ser reutilizável e durar até dez anos, quanto pela questão de saúde. Grande parte das mulheres que recebem outras doações nos campos de refugiados vendem para conseguir dinheiro, mas o coletor menstrual elas não venderam, elas estão usando", comemora Thainá, que vê em seu trabalho a possibilidade de clarificar o que ainda é tabu. "Documentar é muito importante, estimula um repensar na nossa consciência, uma ressignificação de algo que é tão natural, é a origem de qualquer ser humano. A gente foi um óvulo fecundado. O que não é um óvulo fecundado é a menstruação", pontua.

"Minha menstruação! Meu orgulho.", diz, em inglês, o cartaz da ONG segurado pela jovem (Foto: Reprodução/Twitter/PeachAid)

 

Sobre a autora

Ana Angélica Martins Marques, a Morango, é mineira de Uberlândia, jornalista, fotógrafa e DJ. É também autora do livro de contos Quebrando o Aquário. Passou pela décima edição do Big Brother Brasil e só foi eliminada porque transformou o temido quarto branco no maior cabaré que você respeita. É vegetariana e cuida de três filhos felinos: Lua, Dylan e Mike.

Sobre o blog

Um espaço para falar de amor, sexo, comportamento feminino e feminismo com leveza e humor. Tudo sob o olhar de uma mulher esperta, que gosta de mulheres tão espertas quanto ela!