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Quando silenciamos, os ignorantes e mal intencionados ganham espaço

Universa

19/02/2020 04h00

"Ela queria dar um furo a qualquer preço contra mim" (Imagem: Reprodução/Twitter)

No ponto de ônibus, cumprimentei cordialmente as duas senhoras que já estavam ali e me sentei. Em dez minutos até a chegada do coletivo que nos levaria até o centro, ouvi elogios a Bolsonaro e comentários sobre as jornadas delas para a aposentadoria. "Meu advogado falou que no exame de perícia do INSS, quando o médico encostar nas minhas pernas devo gritar 'ai, ai, ai'", comentou uma.

Falar ou calar?

Calculei a possibilidade e os riscos de me intrometer na conversa. Deveria? Teríamos tempo hábil para um diálogo saudável? Havia disposição mútua para o debate de ideias? Respirei fundo, abri o Twitter e só comentei o fato lá.

Instantes depois, o ônibus chegou e o cobrador não me deu o troco certo. Embolsou cinco centavos. Não é a primeira vez, nem o único cobrador que fez isso. Novamente minimizei a questão e não reclamei.

Há meses tenho evitado conflitos e usado as minhas redes sociais pra desengasgar. Ultimamente venho refletindo sobre o quanto essa saída é, de fato, útil.

Não é 'só' pelos cinco centavos: a normalização dos absurdos 

Ontem, nas redes sociais, os principais debates eram sobre a fantasia indígena usada por Alessandra Negrini; a exploração da dor de uma mãe no Cidade Alerta, e mais uma declaração misógina de Bolsonaro contra uma jornalista. Cada um dos assuntos tem uma profunda conexão com o outro.

Cidade Alerta

No Cidade Alerta, uma mãe recebeu, ao vivo, a notícia de que a filha, desaparecida, tinha sido assassinada pelo namorado. Só no estado de São Paulo foram 136 feminicídios em 2018 e 182 em 2019, um aumento de 33,8% no número de casos. Sensacionalista, o programa espetacularizou a dor profunda de uma mãe que desmaiou na frente das câmeras e continuou sendo filmada.

Dor espetacularizada: mãe descobre ao vivo que filha desaparecida foi morta pelo namorado e segue sendo filmada mesmo depois de desmaiar (Imagem: Reprodução/Twitter)

Violência avalizada

Bolsonaro, em mais uma declaração sexista, afirmou que Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, queria dar 'um furo' a qualquer preço contra ele. 'Furo' é um jargão jornalístico que significa 'notícia inédita' e geralmente impactante. O presidente, que não gosta de livros e tem um repertório bastante limitado e tosco, usou intencionalmente o duplo sentido da palavra para ofender e diminuir Patrícia como profissional e como mulher.

Enquanto Bolsonaro faz troças, mulheres e indígenas têm seus direitos elementares violados e são mortos.

Em 2019, sete líderes indígenas foram assassinados. O número é 250% maior que o registrado em 2018. Os dados são da Comissão Pastoral da Terra. A organização considera apenas as mortes por conflitos de terra.

O aumento dos casos de feminicídio e de violência contra os povos indígenas no Brasil coincide com a multiplicação dos discursos misóginos e racistas dos líderes políticos da extrema direita.

Fui pra rua no movimento #EleNÃO e vi Bolsonaro ser eleito – e continuar na presidência apesar de toda a falta de preparo e de decoro. Acho que o sentimento de impotência que me paralisa diante dos absurdos cotidianos nasceu ali e, como um monstro, comeu a minha coragem. O problema é que quando silenciamos, os ignorantes e os mal intencionados ganham espaço.

A coragem de Alessandra Negrini

Alessandra Negrini é madrinha do bloco Acadêmicos do Baixo Augusta há oito anos. Em todos os sete anteriores, foi exaltada pela boa forma física. Neste, duramente criticada pelos trajes. Alguns ativistas argumentam que a existência indígena não é fantasia, e criticam o uso de adereços e pinturas corporais por não-indígenas porque consideram o ato uma apropriação cultural.

Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e Alessandra Negrini (Foto: Reprodução/Twitter)

Em nota, a APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, defendeu a atriz. "Alessandra Negrini colocou seu corpo e sua voz a serviço de uma das causas mais urgentes", pontuou Sônia Guajajara, coordenadora da APIB. Na declaração, Sônia ainda faz um alerta: "Está tramitando no Congresso uma MP que tenta regularizar a grilagem. O PL da Devastação quer impor a exploração das terras indígenas. Um evangélico missionário está em um posto estratégico da FUNAI e pode provocar a extinção de povos não contactados.".

A possibilidade de cometer erros tentando acertar me parece mais promissora que a inércia. Somos todos agentes, não meros espectadores da vida. Obrigada pela inspiração, Alessandra.

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Sobre a autora

Ana Angélica Martins Marques, a Morango, é mineira de Uberlândia, jornalista, fotógrafa e DJ. É também autora do livro de contos Quebrando o Aquário. Passou pela décima edição do Big Brother Brasil e só foi eliminada porque transformou o temido quarto branco no maior cabaré que você respeita. É vegetariana e cuida de três filhos felinos: Lua, Dylan e Mike.

Sobre o blog

Um espaço para falar de amor, sexo, comportamento feminino e feminismo com leveza e humor. Tudo sob o olhar de uma mulher esperta, que gosta de mulheres tão espertas quanto ela!