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Morango

Querem curar a gayzice e a lesbicagem: que ano é hoje mesmo, gente?

Angélica Morango

20/09/2017 17h14

(Foto: Getty Images)

Dormi em 2017 e acordei na Idade Média. Meu celular ainda funciona, o wi-fi também. Continuo mulher. Lesbiquíssima, inclusive. Ouço baixinho uma voz que diz: "Seu amor me pegou Cê bateu tão forte com o seu amor" – é o Pabllo Vittar tocando. Numa fração de segundos tudo some: telefone, internet, música. E estou desintegrando também. Já sou só metade e estou invisível para os outros.

Nas ruas, corpos caminham sem rostos definidos. Pessoas são apenas manchas, pinceladas aleatórias numa tela. Mas eu nem me atrevo a pensar em arte. Uma exposição que explorava a diversidade de gêneros acaba de ser cancelada em Porto Alegre e eu não consigo mais discernir se estou no passado ou futuro. Aqui, quando mulheres amamentam bebês em público é um escândalo, mas um homem pode ejacular em passageiras de ônibus por até 17 vezes sem que isso lhe cause grandes transtornos.

Vejo sangue no asfalto. Uma travesti foi espancada até a morte. A multidão passa ao lado e ignora. O assassino está no meio dela e segue impune. No Brasil, país campeão em homicídios de LGBTs nas Américas, a cada 25 horas acontece um assassinato por homofobia ou transfobia, crimes cuja única motivação é o ódio.

As penitenciárias estão lotadas e essa é uma das justificativas para a impunidade. Em nosso país faltam espaços nas cadeias, mas sobram malas de dinheiro "sem dono". Não há leitos nem remédios para todos, e também não se sabe ao certo qual o fim que milhões de dólares repatriados de corrupção tem. Mas nada disso parece ser relevante.

Por que empenhar-se em encontrar soluções se é mais fácil baixar cortinas de fumaça? Mágicos e governantes possuem essa habilidade em comum: atrair a atenção do público para um determinado ponto, enquanto o desdobramento principal acontece nos bastidores.

Um juiz determinou que psicólogos podem reverter a gayzice, regredir a lesbicagem. Esse juiz avalizou uma prática que o próprio Conselho Federal de Psicologia proíbe. Um único juiz determinou que a homossexualidade é passível de tratamento, apesar de a Organização Mundial de Saúde, OMS, dizer o contrário. Nas ruas e dentro das casas, essa é a justificativa legal que homofóbicos e transfóbicos precisavam para exorcizarem a pau o demônio da sem-vergonhice e da falta de caráter.

Para essas pessoas, que não entendem e nem aceitam as diferenças, gays, lésbicas, travestis e transexuais não nasceram assim, são libertinos porque apanharam pouco na infância. O juiz em questão, Waldemar Cláudio de Carvalho, atendeu ao pedido de um pequeno grupo de psicólogos, liderado por uma que também é missionária evangélica, Rozangela Alves Justino. Multifunções, Rozangela trabalha como assessora do pastor-deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), apadrinhado político de Silas Malafaia, líder da igreja Assembléia de Deus Vitória em Cristo.

Em nome de Cristo, homossexuais foram queimados vivos nas fogueiras da Inquisição. Retrocedemos ou nunca saímos do lugar?

Sobre a autora

Ana Angélica Martins Marques, a Morango, é mineira de Uberlândia, jornalista, fotógrafa e DJ. É também autora do livro de contos Quebrando o Aquário. Passou pela décima edição do Big Brother Brasil e só foi eliminada porque transformou o temido quarto branco no maior cabaré que você respeita. É vegetariana e cuida de três filhos felinos: Lua, Dylan e Mike.

Sobre o blog

Um espaço para falar de amor, sexo, comportamento feminino e feminismo com leveza e humor. Tudo sob o olhar de uma mulher esperta, que gosta de mulheres tão espertas quanto ela!