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Lésbica, machorra, sapatão: como ressignifiquei o que antes era ofensa

Universa

20/05/2020 04h00

Euzinha (Foto: Arquivo Pessoal)

Desde pequena eu era diferente das outras meninas. Não curtia bonecas, maquiagens, nem vestidinhos. E eu notava isso. As minhas amiguinhas, também. Os meninos, idem. Mas isso não foi nenhum problema até os 11 anos, quando a minha predileção por roupas largas fez com que eu começasse a receber apelidos desagradáveis na escola: sapatona, machorra, lésbica. Aos 11 anos.

Nessa época, em 1996, antes da popularização das lan houses com internet, existiam os espaços com jogos de videogame. A dinâmica era bem parecida, só que os jovens se reuniam pra jogar presencialmente, não online, e interagiam mais. Eu era a única menina que frequentava a lan house do meu bairro. Me sentia confortável e acolhida lá.

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Liberdade

Curiosamente (ou não, para quem acredita em destino), as donas da lan house eram duas mulheres, Simone e Márcia. O filho da Márcia tinha a minha idade e estava sempre por perto. Ele se referia à Simone como tia, dizia que ela e a mãe dele eram primas.

Muito tempo depois, rememorando alguns detalhes e ligando fatos, entendi que eles formavam uma família homoafetiva.

Vinte e quatro anos atrás, a liberdade para assumir isso era infinitamente menor que hoje.

Os apelidos que me incomodaram na pré-adolescência me perseguiram por bastante tempo, mesmo depois de eu me mudar de cidade e de escola.

Continuo não sendo muito fã de maquiagem (Foto: Arquivo Pessoal)

Beijei a primeira menina aos 16 anos e foi aí que aconteceu a grande virada da minha vida. Era isso! Eu nunca tinha sentido por garotos um décimo da atração romântica e sexual que eu tinha por garotas.

Achei, de um jeito meio torto, que se eu adotasse um comportamento mais feminino, poderia me relacionar com garotas sem ser zoada na escola. A ideia era manter a aparência como camuflagem para evitar o preconceito. Bobagem. Eu continuava me escondendo. Só dava beijos furtivos e nunca saía de mãos dadas. Atendia às expectativas da sociedade, de "ser, ser parecer ser", mas isso não me levava a lugar nenhum. Era só uma prisão diferente.

"Secreto e Proibido"

Recentemente assisti à "Secreto e Proibido", um documentário da Netflix que traz a história de amor de um casal de mulheres que permaneceram juntas por 72 anos. Ele começa com uma delas ligando pra médica para falar da saúde da outra, a quem se refere como prima.

"Secreto e Proibido", documentário da Netflix que quase me matou de chorar no final (Foto: Divulgação)

Imediatamente lembrei da Simone e da Márcia, o primeiro casal lésbico que conheci, as donas da lan house. E pensei nas várias situações em que apresentei minhas namoradas como "amigas" para a minha família e pra colegas de trabalho.

É que mesmo quando a gente se assume e enfrenta isso, não se livra completamente do medo. Do medo de uma ofensa, de uma agressão, de perder o carinho e a admiração de quem amamos.

No drama da Netflix (tô me segurando pra não dar spoilers), são nítidas as cicatrizes do medo na vida delas.

Coragem

Levei muito tempo pra ressignificar as expressões que me fizeram tão mal no passado: lésbica, machorra, sapatão. E isso aconteceu de duas formas.

Primeiro, aprendi a importância de usar o termo certo, não o genérico. Sou lésbica, não gay, e é importante afirmar isso para não sermos invisibilizadas.

Depois, tive a sorte de conhecer mulheres que lidam com essa questão com tanta naturalidade que, entre amigas, se chamam de "macha", "machorra", "sapatão". Elas me fizeram querer ser leve – e ser livre – assim também.

As palavras nunca foram o problema. O contexto em que elas são ditas, sim. E é ele que a gente tem que mudar.

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Sobre a autora

Ana Angélica Martins Marques, a Morango, é mineira de Uberlândia, jornalista, fotógrafa e DJ. É também autora do livro de contos Quebrando o Aquário. Passou pela décima edição do Big Brother Brasil e só foi eliminada porque transformou o temido quarto branco no maior cabaré que você respeita. É vegetariana e cuida de três filhos felinos: Lua, Dylan e Mike.

Sobre o blog

Um espaço para falar de amor, sexo, comportamento feminino e feminismo com leveza e humor. Tudo sob o olhar de uma mulher esperta, que gosta de mulheres tão espertas quanto ela!