Censura homofóbica na Bienal: o tiro que saiu pela culatra
Dá pra imaginar uma história em quadrinhos passando despercebida durante nove anos até que do dia para a noite fosse apontada como a publicação mais inadequada da atualidade? Pois é exatamente o que aconteceu com "Vingadores: a Cruzada das Crianças", que traz um jovem casal gay entre seus personagens. Lançada em 2010, a obra ganhou os holofotes recentemente, depois de sofrer uma tentativa de censura do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Exibindo algumas imagens da HQ em um vídeo divulgado em suas redes sociais, o político, que também é líder evangélico, prometeu banir os exemplares da Bienal Internacional do Livro que acontecia na cidade. E foi além. "A prefeitura do Rio de Janeiro determinou que os organizadores da Bienal recolhessem esse livro que traz conteúdo sexual para menores. Livros assim precisam estar embalados em plástico preto, lacrado, e do lado de fora avisando o conteúdo", bradou Crivella, numa interpretação muito particular (para não dizer tendenciosa e hipócrita) do que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preconiza.
O que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente
Em seu artigo 78, o ECA determina que "revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas com embalagem lacrada e com a advertência de seu conteúdo". No artigo 81, a mensagem é ainda mais clara: "é proibida a venda à criança ou adolescente de revistas e publicações a que alude o artigo 78". Trocando em miúdos, as proibições versam sobre obras com conteúdo pornográfico (destinadas a adultos), e que sequer podem ser vendidas a jovens com menos de 18 anos de idade.
O barulho de Crivella fez com que os exemplares de "Vingadores: a Cruzada das Crianças", que estavam disponíveis em diferentes estandes da Bienal, se esgotassem em meia hora, segundo os organizadores do evento. A HQ, com roteiro de Allan Heinberg, produtor do seriado Grey´s Anatomy (2005) e do filme Mulher Maravilha (2017), e arte de Jim Cheung, que tem dezenas de livros da Marvel no currículo, é só mais um livro que traz um beijo entre duas pessoas. Como tem beijo do príncipe na Branca de Neve, tem beijo entre a Bela e a Fera, e tem beijo na boca em tantas outras histórias que passamos a infância lendo – e sobre as quais ninguém nunca deu um pio. A diferença na interpretação de uma obra para as demais é o preconceito.
Crivella, o "desconectado"?
A sapituca do prefeito evangélico ganhou repercussão mundial e chegou ao conhecimento de Jim Cheung, o ilustrador de "Vingadores: a Cruzada das Crianças", que se manifestou pelo Instagram. "Não sei o que levou o prefeito a procurar um trabalho que tem quase uma década e que já estava à venda há muitos anos (…) só demonstra o quanto ele parece estar desconectado da realidade", observou ele, para mais de 130 mil seguidores de todas as partes do globo.
Aos 61 anos de idade e com uma longa carreira política, religiosa e acadêmica (ele é engenheiro civil e chegou a ser professor universitário), Marcelo Crivella pode ser tudo, menos um "desconectado da realidade". Seu ataque à comunidade LGBTQI+ tampouco pode ser considerado um lapso por ingenuidade ou desconhecimento. Crivella e seus asseclas ignoram os problemas reais e priorizam a castrativa pauta de costumes. Alguns tiros, felizmente, saem pela culatra.
O levante contra a censura
Respostas à tentativa de censura na Bienal ecoaram de todos os lados. Youtuber e empresário, Felipe Neto comprou e distribuiu 14 mil livros na feira; e uma editora, a Rico, liberou o acesso gratuito a seus e-books com a temática queer e registrou mais de 4o mil downloads em apenas dois dias. O levante também tomou as redes sociais e diversas personalidades se manifestaram com as tags #CensuraNão e #LeiaComOrgulho. Entre elas figuram Paolla Oliveira, Samara Felippo, Mateus Solano, Thiago Fragoso e Daniela Mercury. "Não existe beijo gay, existe beijo. Assim como não existe pornografia gay, e sim pornografia. Ninguém quer criança vendo pornografia. As pessoas (direita e esquerda) querem as crianças sendo crianças e sabendo que no mundo existem heterossexuais e homossexuais", rematou, cristalinamente, Fábio Porchat.
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