Precisamos falar sobre o ‘padrão’
Quando eu tinha seis ou sete anos de idade, meus pais me colocaram no balé. Supliquei (em vão) para que me matriculassem no judô. Não sei se me impuseram a dança porque era modinha entre os pais de menina, ou se imaginavam que isso me tornaria mais graciosa e feminina. Não funcionou. Por uma dessas obras do destino, minha primeira apresentação de balé foi "O Soldadinho de Chumbo", um clássico de Hans Christian Andersen que conta a história de um soldadinho "imperfeito".
Fabricado depois de 24 bonecos de chumbo iguais, o vigésimo quinto e último soldadinho é produzido com apenas uma das pernas, porque não havia mais material para a outra. Ele então é colocado junto com os demais numa caixa que é vendida e entregue de presente para um garoto. Um dia, entre florestas e castelos de papel, o soldadinho de uma perna só avista uma bailarina com os braços erguidos em arco sobre a cabeça e uma das pernas dobradas para trás, escondida pela saia de tule. Acreditando que ela também tivesse apenas uma perna, o soldadinho se apaixona perdidamente.
Ter me dedicado a essa história por meses a fio para aquela apresentação talvez tenha plantado em mim uma sementinha de coragem. Só compreendi isso muitos anos depois. Não fui uma menina, nem uma adolescente bonita, feminina ou graciosa, e estar aquém das expectativas tinha um preço: preterimento, solidão e sensação de não pertencimento a lugar nenhum. Mais velha, por volta dos 18, decidi que não faria mais sacrifícios por migalhas de aceitação. O tempo não molda uma nova perna no soldadinho, só revela que ela nunca foi imprescindível. Hoje, além da minha, trago duas outras histórias de quem também cresceu à margem dos "padrões" e ressignificou o próprio passado.
"Sentimento de inferioridade"
"Quando descobri ser lésbica, não havia tanta informação e referência quanto hoje. Lembro de ter pesquisado no Google a frase 'mulheres lésbicas se beijando' e notado que além de muito conteúdo pornográfico, apareceram apenas mulheres brancas e magras. Então digitei 'mulheres lésbicas de cabelo curto' e recebi imagens de centenas de mulheres brancas, magras e de cabelo curto. Tive um sentimento de inferioridade porque me olhava no espelho e não via o que o Google, a televisão, as revistas e a internet (ainda discada) mostravam. Me questionava sobre o porquê das minhas amigas já terem beijado na boca e eu ainda não, e a resposta sempre era a mesma na minha cabeça: 'negra e ainda por cima com essa barriga? Difícil'", desabafa a analista de Marketing Lívia Ferreira, 25.
Mineira de Divinópolis, Lívia lembra que só se sentiu verdadeiramente representada há apenas sete anos, ao assistir às apresentações Ellen Oléria no The Voice Brasil. Mais que a vencedora da primeira edição do programa da Globo, Ellen foi uma grande inspiração para Lívia. "Minha primeira visão de mulher preta e lésbica na TV foi ela. Existia alguém igual a mim e isso foi incrível! Comecei a estudar sobre racismo, procurar terapia, e tudo isso me ajudou. Hoje, sendo uma mulher negra, lésbica, que não performa feminilidade e não tem o corpo 'padronizado', fico orgulhosa de ver que as coisas melhoraram. Estão ideais? Não. Ainda há muito preconceito no meio lésbico em relação às mulheres negras, mulheres gordas ou qualquer coisa que saia do padrão 'branca e magra'. Mas progredimos", comemora.

"Fico feliz que as garotas lésbicas negras da nova geração tenham tanto conteúdo à disposição, que estejam mais empoderadas, que consigam reconhecer que merecem ser amadas e respeitadas. Sonho com o dia em que ao digitar 'mulheres lésbicas' no Google apareçam todas", abre Lívia (Foto: Arquivo Pessoal)
Com a amiga Ana Flávia, de Itu (SP), Lívia criou o "Toda Sapata Já", um canal de humor e informação para mulheres lésbicas e bissexuais, que nas redes sociais tem quase 100 mil seguidoras. Lá, as internautas ora se divertem com os clichês da vida sapatônica, ora pedem (e recebem) conselhos de todos os tipos. "A minha luta é diária e uso o @todasapataja como ferramenta de conscientização", expõe.
Angústia camuflada
José Rossoni também é popular na internet. Assumidamente gay, o publicitário virou celebridade do dia para a noite quando um vídeo em que chorava as pitangas viralizou. "Ninguém me 'tucuta' no Facebook" foi visto por mais de 3 milhões de pessoas no YouTube e fez sucesso até em programas de TV como o da Eliana e o extinto Legendários. O que pouca gente sabe é que camuflada como divertimento, a angústia que José sentia por não se considerar atraente era real: "Ninguém me queria".

"A cara melhorou, mas e o corpo malhado pra tirar a camisa na balada?!", brinca José, ainda insatisfeito com alguns detalhes, mas bem mais confiante que há oito anos, quando seu vídeo estourou (Foto: Arquivo Pessoal)
Aos 30 de idade e atualmente morando em Boston (EUA), José namora um ucraniano 20 anos mais velho. "Aprendi a ser livre. Aceitei que gosto de gente mais velha e fico com quem eu quero", diz. A firmeza de posicionamento veio com o tempo, depois de algumas experiências indigestas. "Aos 19 comecei a namorar um cara lindo, negro. E terminei por causa do estereótipo do 'negro ativo'. Meu pai e os amigos dele faziam piadas disso, então comecei a pensar que eu ia ficar com fama de 'arrombado'. Perdi um cara maravilhoso. Continuamos amigos, mas foi um arrependimento não ter sido maduro na época. Gosto de como me desconstruí. Hoje eu vejo que a militância ajuda a quebrar tabus e faz com que a gente se coloque melhor."
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"Tudo bem ser lésbica, desde que não vire sapatão". Essa frase soa familiar para você?
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