“Como foi morar com o Belchior por três meses”
Há três anos, num triste 29 de abril, nos despedíamos de um dos artistas mais prolíficos do século. Cantor, compositor, pintor, ilustrador e caricaturista, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, o Belchior, partiu deixando saudades e segredos.
Compositor de "Como Nossos Pais", "Apenas Um Rapaz Latino Americano", "Paralelas", "Sujeito de Sorte" (mais atual que nunca nas vozes de Emicida, Majur e Pabllo Vittar), entre tantos outros sucessos, Belchior em seus últimos dez anos escolheu a reclusão e a discrição. Não fazia mais shows, era avesso a fotografias e morava com alguns poucos e bons amigos que fez ao longo da vida.
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Para amenizar a falta que um dos maiores ícones da MPB nos faz nos dias de hoje, a historiadora Marina Trindade, que conviveu com ele durante parte desse tempo, revela o lado simples e doce do "rapaz latino americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior".
"Visita inusitada"
"Tudo começou em outubro de 2013. Eu estava no ônibus vindo de Porto Alegre para Santa Cruz, ia visitar meus pais. No meu celular só tocavam as clássicas do Belchior e eu me perguntei onde será que ele tava, o que tinha acontecido e por que ele tinha sumido da mídia. Passei a viagem analisando as letras e pensando em pesquisar mais sobre ele. Eu realmente tava muito curiosa pra entender o que tinha acontecido."
Naquele momento Marina, que era fã de Belchior desde criança por influência dos pais, Ingrid e Ubiratan, não fazia ideia de que estava prestes a conhecer – e conviver – com o ídolo. "Eu e teu pai estamos com uma visita um tanto inusitada em casa. Ninguém pode saber que eles estão com a gente", segredou a mãe quando foi buscá-la na rodoviária.
"Eles" eram Belchior e a mulher, a produtora cultural Edna Assunção. Belchior e Edna viveram durante cinco anos em Santa Cruz do Sul, até 2017, quando o cantor faleceu enquanto dormia, aos 70 anos.
"Todo mundo sabe que o Belchior queria ter essa experiência de viver longe da mídia e de tudo e de todos, da família, enfim. Ele passava de cidade em cidade, tanto que foi até para outros países por um tempo. (Antes de Santa Cruz do Sul, Belchior e Edna viveram cinco anos no Uruguai). Acho que ele escolheu Santa Cruz porque ele se sentia muito acolhido. Uma rede de amigos escondeu o Belchior. Além da minha, só outras quatro famílias sabiam da existência dele aqui. Ninguém mais, na cidade inteira, sabia. Ele pediu por isso e a gente respeitou essa vontade", entrega Marina.
"Ele contou que já gostava de mim sem me conhecer porque quando entrou no meu quarto pela primeira vez, viu um enorme quadro dos Beatles e discos do Raul, Pink Floyd e dele próprio. 'Já me senti à vontade. Tão bonito de ver uma jovem gostar de Beatles'", recorda. "Além de Beatles, o Antônio – ele preferia ser chamado assim – amava Bob Dylan! E me contou do dia que o conheceu em Porto Alegre, num show, e tomaram vinho nos bastidores."
Poemas e histórias
"A gente jantava junto toda noite. Nessa época eu comia somente peixe, assim como ele, então muitas jantas eram vegetarianas. E depois de cada refeição ele gostava de comer uma banana", lembra Marina. "Toda janta tinha um momento marcante. Ou ele declamava poesia em latim, alemão ou francês, ou contava histórias sobre Chico Buarque e Raul Seixas. Segundo o Bel, todo mundo dizia que Raul era louco, mas na verdade ele era só um cara engraçado mesmo."
Boas lembranças
"Um dia fomos passear no mato e ele pediu silêncio porque ouviu um passarinho cantar. Naquele momento, começou a assoviar como um pássaro, chamando ele. Ele veio e pousou no ombro do Belchior. Uma das cenas mais lindas que já vivi."
"Ele precisava de um caderno pra escrever as letras, então dei um meu, com a capa dos Beatles. Em duas semanas o 'homi' escreveu pelo caderno inteiro! Não sei onde foi parar, deve estar com a Edna. Ele escrevia demais! Poemas, contos, músicas…."
"Passei o Natal de 2013 com ele e trocamos diversas experiências sobre nossas viagens pro Canadá. Ele falava com tanto amor de tudo que viveu por lá que eu disse pra ele voltar. Ele não quis, disse que o Brasil precisava dele aqui."
Abraços e saudade
"Ele acordava de manhã cedo e abraçava todo mundo dentro da casa. Perguntava como tava. Ele tinha esse olhar de afeto pelas pessoas. Essa foi sua maior lição pra mim, a amizade, confiar nas pessoas. E ter esses momentos simples de um jantar, tomar um vinho, trocar uma ideia, que é o principal da vida. Isso que a gente deveria fazer mais e infelizmente neste momento não pode por causa do coronavírus", reflete.
"Se eu pudesse voltar atrás, ia aproveitar muito mais esses momentos com ele. As jantas que a gente fazia, as caminhadas no meio do mato, as bobagens que a gente falava, as histórias que ele contava sobre as experiências com outros grandes mestres da MPB, sabe?! Essas coisas pequenas que valem a pena."
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