“Minha companheira de quase 20 anos aceitou-se recentemente como lésbica”
Universa
17/06/2020 04h00
Paulistanos, Bruce* e Tatiana* se conheceram no trabalho, como tantos outros casais. Admitidos no mesmo dia, na mesma empresa, eles descobriram que tinham muita coisa em comum, até o endereço – eram praticamente vizinhos.
Depois de incontáveis caronas e muitos cafezinhos, os dois, que se tornaram melhores amigos, começaram a namorar. E então se casaram, e tiveram a Júlia*, que hoje tem cinco anos.
Conto de fadas contemporâneo
A história parece um conto de fadas. E em partes, é. Só que um desses contos contemporâneos. Aqui, não há príncipe num cavalo branco, nem princesa perdendo o sapatinho. Na verdade, a princesa entendeu que gosta de princesas, e o príncipe, que foi o melhor amigo dela por 19 anos, deseja apoiá-la nessa decisão.
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Conheci essa história quando o Bruce, que é uma pessoa real, cientista da computação e músico, me enviou uma mensagem pelo Instagram.
"Minha companheira de quase 20 anos aceitou-se recentemente como lésbica. Está tudo bem conosco, somos extremamente amigos. Temos uma filha de 5 anos e meio e estamos juntos nesse novo momento, mesmo que não mais como um casal. Gostaria de saber se você tem conhecimento de livros infantis com temáticas LGBT", dizia a mensagem.
Respondi e conversei com os dois por telefone. A ligação, que durou quase uma hora, virou matéria.
"Tive uma relação com uma menina na faculdade"
Tatiana, que é administradora de empresas e tem 38 anos, teve um único relacionamento homoafetivo, durante a faculdade. "Faz muito tempo, depois não tive nenhuma relação com outra menina", conta.
"Eu e o Bruce, começamos a namorar, casamos, e há um ano comecei a sentir atração por mulheres. Comecei a ficar muito mal comigo mesma. Cheguei até a pensar em fazer besteiras antes de conversar com ele, porque sentia que não estava sendo sincera nem comigo, nem com ele. Não era justo. Ele sempre foi meu companheiro. Antes de começar a namorar, nós éramos super amigos. Começou assim. Acho que tudo tem seu propósito. Nós temos a Júlia, que é fruto do nosso amor e é o nosso melhor projeto", celebra.
Tatiana, que nunca tinha comentado sobre o relacionamento lésbico que viveu na faculdade, se abriu com Bruce no fim do ano passado. "Quando a gente conversou sobre isso, depois de 20 anos que a gente se conhece, é claro que eu fiquei triste, chateado, chorei. Mas é coisa de fases. Primeiro você fica triste, depois tem a aceitação. A gente tem muita coisa legal pra viver daqui pra frente, cada um do seu jeito, cada um na sua casa, mas tendo a nossa filha como elo", diz ele.
"A sexualidade pode se transformar e se desenvolver, fluir e se modificar", diz psicólogue
Dre Calderon, pessoa não-binária, psicólogue, especialista em sexologia aplicada e terapia sexual, explica que "o medo de julgamento, repressão e punição estão sempre presentes ao lidar com questões sexuais".
"Ainda temos uma ideia muito binária sobre o mundo, onde se é isso ou é aquilo. Como se o desenvolvimento da sexualidade se desse apenas na adolescência, e permanecesse estático durante toda a vida. Estamos em constante desenvolvimento, e a sexualidade não está fora disso. Ela pode se transformar e se desenvolver, fluir e se modificar. Alfred Kinsey desenvolveu um dos maiores estudos já feitos dentro da área da sexualidade, em que identificou que poucas pessoas são 100% heterossexuais ou homossexuais, ou bissexuais. A grande maioria das pessoas está entre esses espectros. É necessário que possamos encarar questões da sexualidade de maneira natural, como elas são", observa Dre.
"É essencial não tratar a criança como um ser incapaz de compreender a situação"
E psicólogue pontua ainda que o processo de separação dos pais deve ser encarado com carinho e cuidado, porque em muitos casos a criança se sente culpada pelo rompimento. "Validar os sentimentos que a criança traz, e possibilitar a ressignificação deles é muito importante. Também é essencial não tratar a criança como um ser incapaz de compreender a situação. Para isso, é necessário que os pais sejam honestos e objetivos, utilizando claro, linguagem acessível à criança, de forma que possa compreender o que está se passando, e que não diz respeito a ela."
Dre lembra ainda que "a priori, as crianças não tem preconceitos, nem repertório para julgamentos. Esses comportamentos são aprendidos socialmente. Em geral, não existe um momento específico para tratar do assunto da sexualidade com crianças, para além de quando elas mesmas apresentarem curiosidade ou tiverem comportamentos relacionados à sexualidade".
Livros LGBTs para crianças
"Hoje em dia há diversos livros sobre LGBTs e toda a diversidade de configurações familiares para crianças. 'O grande e maravilhoso livro das famílias', de Mary Hoffman e Ros Asquith, é um deles. Em 'O Amor é Uma Festa', de Ms. Full, as próprias crianças relatam sobre as diversidades de suas famílias. E para questões mais gerais, toda a coleção de Marcos Ribeiro, que tratam de questões importantes para o desenvolvimento infantil, como gênero, por exemplo", indica e psicólogue.
*Nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados
Sobre a autora
Ana Angélica Martins Marques, a Morango, é mineira de Uberlândia, jornalista, fotógrafa e DJ. É também autora do livro de contos Quebrando o Aquário. Passou pela décima edição do Big Brother Brasil e só foi eliminada porque transformou o temido quarto branco no maior cabaré que você respeita. É vegetariana e cuida de três filhos felinos: Lua, Dylan e Mike.
Sobre o blog
Um espaço para falar de amor, sexo, comportamento feminino e feminismo com leveza e humor. Tudo sob o olhar de uma mulher esperta, que gosta de mulheres tão espertas quanto ela!