Tudo (o que nunca falei) sobre meu pai
Tenho sido injusta com o meu pai há anos. Cheguei a essa conclusão ontem à noite, enquanto eu lavava a louça da janta, coisa que ele geralmente faz na casa dele. Senti saudades. Não nos vemos há algum tempo, apesar de morarmos na mesma cidade. Eu poderia explicar dizendo que é pela distância, de 30 quilômetros, agravada pelo trânsito de São Paulo, mas essa é uma desculpa esfarrapada que eu não vou usar dessa vez.
Entre uma pincelada e outra nos quadros de memória que às vezes exponho aqui, tive a sensação de que retratei meu pai como ele não é: um cara antiquado, machista e homofóbico. Ele já reproduziu piadas e comportamentos preconceituosos e hostis, sim. Eu também. Não poderia ter citado apenas suas falhas em textos anteriores – e omitido as minhas.
Quem é o meu pai?
Ele gosta de telefonemas; eu, de mensagens de texto. Ele não gosta de Whatsapp, porque acha muito impessoal, mas escreve me chamando de "flor do meu jardim". Outro dia me chamou só pra indicar um documentário da Netflix, "The West", que dentre outras coisas explica por que os bisões quase foram extintos nos Estados Unidos (segundo ele, uma estratégia do exército americano para matar os índios nativos de fome, já que eles se alimentavam dos animais). É…
Antônio José (que também atende por Tonim, Tuts e Tuté) tem 53 anos, é casado e pai de três. Escorpiano, sempre se achou bonito e tem pânico de ficar careca – mas está ficando. Começou a trabalhar ainda criança, vendendo sapatos de porta em porta, até conseguir um emprego como digitador. De digitador chegou a analista de sistemas de um banco renomado. Passou em Economia na Federal, mas não cursou – acho que se arrepende disso. Começou a namorar a minha mãe aos 16 e se casou aos 19 – acho que se arrepende disso também.
Na juventude, adorava esportes, principalmente handebol e peteca. Curtiu vários carnavais naqueles "blocos do sujo", onde os homens se vestem de mulher. Quebrou um dos dentes da frente ainda infância e nunca consertou porque acha essa imperfeição charmosa. Se eu engordo dois quilos ele repara, sutil como o Shrek, mas também sabe reconhecer quando não está na sua melhor forma física: "estou flácido, preciso fazer exercícios, estou muito parado", disse na última vez em que o abracei.
Quando eu era criança, meu pai era meu super-herói. Ele nunca brigou pelos rabiscos que fiz na capa do seu disco favorito, "Os Três Tenores"; mas ficou vermelho de raiva, com os olhos saltando pra fora, quando confessei ter surrupiado um pacotinho de tempero (aquele da "galinha azul") no supermercado. Eu tinha seis anos e não agi pela emoção de fazer algo proibido, queria "ajudá-lo" com as compras do mês. Ele voltou comigo ao estabelecimento e me fez devolver o pacotinho e pedir desculpas à caixa. Nunca senti uma vergonha tão grande na vida – mas foi uma lição valiosa.
Meu pai me educava com seu exemplo; minha mãe, com o chinelo. Ele eu admirava, ela eu temia. Eles se separaram quando eu era pequena, e o fim da relação foi brusco e doloroso. Passei anos imaginando que ele podia ter se esforçado mais, e o culpei muito por isso.
Precisei de tempo pra perceber que, apesar de tentativas e esforços, um relacionamento pode fracassar. Vivi, e então compreendi isso, quando o meu casamento acabou. É preciso se redescobrir, se reinventar e, principalmente, se perdoar. Ele tinha o direito a uma segunda chance de ser feliz. Uma segunda, uma terceira, dezenas, se quisesse. Todo mundo tem. Não precisei ter filhos pra entender meu pai, precisei de maturidade.
Pensando bem, ele não era o meu super-herói, ele é, e eu o amo profundamente.
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