"Feministas? As escandalosas com peitos de fora? Deus me livre!", eu dizia
"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino." Sim, você provavelmente já leu essa afirmação de Simone de Beauvoir. Pouco tempo atrás esse trecho de o "O Segundo Sexo", que é considerado um dos livros mais importantes sobre o feminismo, figurou entre as questões do Enem e levantou "polêmica" por abordar o assunto. É que tem gente que se arrepia só de ler essa palavra, feminismo. E eu já fui uma dessas pessoas.
"Feministas? Aquelas mulheres escandalosas que protestam com os peitos de fora? Não, não sou não, Deus me livre!", eu vociferava, no auge da minha ignorância. Confundindo alhos com bugalhos, reduzi minha concepção de feminismo às manifestações do grupo ativista Femen, surgido na Ucrânia em 2008, e que fez muito barulho mundo afora, inclusive no Brasil. Aqui, uma das líderes do movimento era Sara Winter – que depois, numa reviravolta alucinante, tornou-se apoiadora do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro. É.
Sara Winter: de feminista radical a bolsonarista
Apesar de se definir como "conferencista internacional" nas redes sociais, Sara pede doações em dinheiro para seus seguidores. "Minha meta é de R$ 5 mil. Parece muito, mas eu conseguiria pagar todas as minhas contas mensais e, aos pouquinhos, quitar minhas dívidas do cartão de crédito", explica no site de arrecadação. Em troca, ela promete "trabalhar no atendimento presencial e online das gestantes que acham que o aborto é a melhor opção" e demovê-las da ideia – opinião diametralmente oposta à que ela defendia há alguns anos.
Agora evangélica, Sara é uma metralhadora de críticas a todo tipo de manifestação que não esteja alinhada aos ideais conservadores. Seu alvo mais recente foi Maria Casadevall. A atriz curtiu um dos dias de Carnaval de topless com os dizeres "ele não" pintado no corpo. "Peito de fora não tira nenhuma mulher da violência, nem choca mais a sociedade, só te faz parecer carente e mimada", esbravejou Sara. Apesar de risível, o posicionamento da ex-radical não é espantoso. Vai ao encontro da imagem de boa moça arrependida que ela tenta passar. O que me causou espanto – e indignação – foi o "fogo amigo".
"Meu corpo, minhas regras"
Muitas mulheres e perfis que se dizem feministas na internet execraram a atitude de Maria Casadevall, argumentando que ela só teria saído assim por ser branca, famosa e privilegiada pela possibilidade de se manifestar sem colocar sua vida em risco. Sentida, a atriz se retratou publicamente: "às manas que se sentiram ofendidas e atravessadas pela minha atitude, de qualquer forma que seja, minhas desculpas.".
A primeira vez que estive frente a frente com uma mulher protestando de peito nu foi há dois anos, enquanto fazia a cobertura da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, com uma equipe de reportagem. Tive um misto de surpresa e admiração tão grandes pela moça que arrebentei em pulinhos e aplausos orgulhosos. "O que você está contando aqui?", perguntei, sobre a nudez libertadora que ela ostentava. "Meu corpo, minhas regras", respondeu, de pronto, num momento que significou tanto pra mim quanto a leitura de Beauvoir. A atitude da jovem (muitos anos mais nova que eu) foi inspiradora. Reacendeu em mim a chama da coragem e despertou sentimentos adormecidos de pertencimento e irmandade. Uma mulher não depende da aprovação das demais para nada, precisa do respeito.
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